Thursday, March 15, 2007

Glossário - significados e conceitos

Rio
Filho do mar e da serra, tomando a forma permanente de curso de povo natural, aceitando dormir entre as duas margens. Contudo, por vezes, o povo alarga-se e necessita destas margens que são suas por usucapião adquirido há mais de muitos milhões de anos. Odiando a estagnação, o rio desliza sem descanso entre o pai e a mãe e vice-versa, em função da inclinação que o obriga ou da alegria que o motiva.

Povo
Conteúdo móvel do rio, correndo naturalmente para o pai ou para a mãe, por vontade própria ou por obrigação.

Água
O mesmo que povo.

Mar
O pai do rio. Tem voz grossa e uma presença forte, apesar de distante.

Serra
A mãe do rio. Uma ternura... sempre presente e disponível. Emocionalmente muito estável, ao ponto de não se zangar mais do que 2 a 3 vezes por ano, apesar de repetidamente ignorada e desrespeitada.

Ria
Irmã do rio, também exclusivamente formada por povo. Como filha da serra e do mar, a ria afastou-se das suas origens e valores, oferecendo o corpo a qualquer um, pelo que apanha doenças mal cheirosas com muita frequência.

Nora
Casada com o rio, o filho da serra e do mar. Entrou para a família levando como dote a obrigação de ajudar o povo a sair, produzir fartura e a regressar ao rio, alargando as margens que são propriedade do rio.

Margem
Limites naturais do rio, incluindo como espaço possuído e próprio todas as porções arenosas que o povo ocupa em ocasiões de enchente e outros ocupam em ocasiões de ganância, não tendo estes ainda conseguido que o povo se tenha esquecido de periodicamente voltar a ocupar essa propriedade.

Natureza
O mesmo que queca. Acto de amor entre o mar e a serra que, quando se encontra em período fértil, emprenha e procria o rio.

Enchente
Manifestação natural de entusiasmo do povo, provocando o seu ajuntamento intenso e cíclico que arrasta mais povo, tornando o rio mais abundante, completo e dinâmico. Há anos atrás esta enchente era alegre e esperada com grande ansiedade. Nos últimos anos, a enchente consiste num protesto do povo que só assim exerce e marca a sua posse natural das margens.
Alguns exemplos de enchente: sacha, mercado, romaria, escarpelada, manifestação do rio ou do povo sob a forma de cheia, etc.

Mercantel
Elemento longo e gordo do povo, atrevido e aventureiro, que vem e vai para o mar.

Bateira
Membro curto e magro do povo, prudente, comedido e muito saudoso do seu paradeiro.

Alma
Matéria de que o povo é feito. Unidade atómica ou individual que uma vez lançada ao rio se torna inseparável da totalidade do povo. Nesta terra, a alma é alegre.

Água do Botareu
Parte do povo que comanda a sua paixão, o mesmo que coração.

Areia
Conjunto de partículas fluídas que fazendo parte do povo, são descartáveis e também úteis fora do rio.

Águeda
Invenção ou engenho que permite extrair povo do rio, para ser usado nas mais diversas aplicações, para proveito de rios sem alma.

Lavadeiras
Átomos de povo agarrados à medula do rio.

Serranos
Átomos de povo agarrados à mãe.

Murtoseiros
Átomos de povo agarrados ao pai.

Cais das Laranjeiras
Parte do rio onde o povo se junta quando o fruto é doce e natural e se afasta quando o fruto se torna amargo.

Queijo, carvão, lenha
Beijos da mãe.

Berbigão, sal, sardinhas
Beijos do pai.

Trindades
Fresta entre o dia e a noite, por onde o povo espreita a família sagrada.

Eira
Local onde o povo malha e ama.

Fonte
O mesmo que povo, mas mais doce e mais fresco.

Borralho
Estado de alma do povo, colectivo, nocturno e misterioso. Também é entusiasmado, por isso todos os elementos do povo se procuram chegar mais ao borralho.

Romaria
Remanso do rio onde o povo abranda a corrida e se espraia, formando pequenos ou grandes turbilhões que engolem tudo o que neles entrar.

Procissão
Saída do povo de um rio para outro rio, voltando sempre ao mesmo rio inicial.

Zaragata
Manifestação exagerada do sentido de propriedade, motivada por um aumento rápido e mal medido de energia. A zaragata é auto-regulável pois permite dissipar a energia em excesso.

Ribeirinho
Sítio onde se busca alimento, angariado pelo rio para nutrição do povo.

Instante longo
Sol a sol, no estio.

Instante breve
Sol a sol, quando a noite é longa.

um texto inspirado

RIO POVO

NÃO SEI SE O RIO CORRE EM MIM
OU SOU EU QUE CORRO NELE.

NOS DIAS DE SECA
AMBOS FICAMOS MICHES...
NÚS DE TRISTEZA,
FEIOS E MAGROS.

A CHEIA!
AH! A CHEIA É UMA ABUNDÂNCIA...
E UM PROTESTO E UM ENLACE.
E TRANSBORDAMOS JUNTOS
EMPRENHANDO AS MARGENS
QUE FICAM CHEIAS,
PARINDO MILHO, TRABALHOS, FARTURA
E MOÇAS E RAPAZES, RINDO
E COÇANDO
AS CARÍCIAS BRUTAS, ÁSPERAS DA VERDURA
DO MILHO COM FOLHAS COMICHENTAS
E BANDEIRAS COM PÓ ATREVIDO.

NOS DIAS DA FESTA
AMBOS AMAMOS E BEBEMOS
E DAMOS RISOS
QUE ATIÇAM RISOS
NAS ENCOSTAS QUE NOS VÊEM
E FICAM A INVEJAR A NOSSA CORRIDA
SEM OUTROS RISOS...
SÓ COM O ECO DOS NOSSOS RISOS.

NOS DIAS DE TRABALHO
AMBOS SUAMOS GOTAS QUE REGAM OS MILHOS
E AMAMOS E RIMOS E BEBEMOS;
QUE O MILHO É AMÁVEL
E A AJUDA DOS VIZINHOS É ALEGRIA
QUE TAMBÉM SE BEBE.
E GEMEMOS O TIMBRE FINO DA DOR
DO EIXO DA NORA,
E DAS GOTAS SUADAS QUE ENVERDAM O MILHO.

ENTRE AS MARGENS QUE LIGAM O SOPÉ DAS COLINAS,
HÁ UM RIO QUE CORRE EM MIM
E SOU EU QUE CORRO NELE.

AGORA SEI QUE O RIO CORRE EM MIM
E SOU EU QUE CORRO NELE.
COM TUDO O QUE SABEMOS
ESPALHAMOS
A NOSSA UNIDADE DE RIOPOVO
CONSCIENTES DE QUE ESTAMOS
E VAMOS,
MAS A MAIOR PARTE DAS VEZES GOSTAMOS
DE FICAR
E OUVIR VOZES DE NÓS
E ESPREITAR
PEDAÇOS DAS COXAS BRANCAS DAS LAVADEIRAS
QUE ENROLAM MAGOTES DE SAIA,
APENAS PELA FRENTE,
APERTADOS ENTRE OS JOELHOS.

NOS INSTANTES LONGOS,
GOSTAMOS DE FICAR
E OUVIR E ESPREITAR,
DENTRO DAS MARGENS
ESTENDIDAS ATÉ UNIR O SOPÉ DAS COLINAS.
NESTES INSTANTES LONGOS
DEMORAMOS ENTRE AS NOSSAS MARGENS
COM TEMPO PARA PENTEAR
OS PLANOS QUE LIGAM O SOPÉ DAS COLINAS
E, NOS RISCOS QUE PENTEAMOS,
DEITAMOS GRÃO
E ESPERAMOS PELAS CANTIGAS
ENQUANTO O MILHO MEDRA
E ACENA A BANDEIRA…
COMO QUEM CHAMA PARA A FESTA.

NESTES INSTANTES LONGOS
O POVO VOLTA AO RIO
E O RIO ESTÁ SEMPRE A REGRESSAR AO POVO
ATÉ SERMOS UM SÓ,
ATÉ PARTILHAR AS ENTRANHAS
DO ESPAÇO ENTRE AS MARGENS
QUE LIGA O SOPÉ DAS COLINAS.
ASSIM, CONSTRUIMOS A IDENTIDADE DO RIOPOVO.

MAIS TARDE A SERRA, NOSSA MÃE, CHORA
E DESPEJA-SE EM RIO
NOS INSTANTES BREVES,
QUANDO O POVO DESCANÇA,
TODO À RODA DO BORRALHO.
A MÃE-SERRA NÃO CHORA
NEM INCOMODA
NOS INSTANTES LONGOS,
ENQUANTO O POVO E O RIO SE CRUZAM,
ENQUANTO SE ENCONTRAM
E FAZEM IDENTIDADE NAS ENTRANHAS
DO ESPAÇO QUE UNE O SOPÉ DAS COLINAS.
NOS INSTANTES BREVES,
EM QUE A SERRA CHORA COM O CARINHO DE MÃE,
JÁ O POVO E O RIO ESTÃO CANSADOS
E DESCANÇAM DEPOIS DA FESTA
QUE FOI ATÉ AO S. MIGUEL.
É, ENTÃO, QUE A MÃE,
ENTRE SOLUÇOS E LÁGRIMAS,
VISITA O ESPAÇO
QUE LIGA O SOPÉ DAS COLINAS,
ENTRE AS MARGENS,
CONFIRMA A POSSE QUE TEM DOS SÉCULOS
E LIMPA OS RESTOS ESQUECIDOS
DO RIOPOVO
E AS SOBRAS QUE FICARAM
DO FRUTO E DA FESTA QUE FOI ATÉ AO S. MIGUEL.

A MÃE DEIXA E APOIA
O USO DAS ENTRANHAS ARENOSAS
PARA QUE DÊ FRUTO E DANÇA E CANTO…
ENTRE AS MARGENS QUE CORREM PELO SOPÉ DAS COLINAS,
SEM AS TAPAR,
SEM AS DIMINUIR,
SEM AS ABAFAR,
SEM AS OCUPAR COM TUDO O QUE DIMINUI O FRUTO E A FESTA.

AO LONGO DAS ERAS,
A MÃE CHOROU, POR INSTANTES BREVES,
LUTANDO CONTRA AS ARMAÇÕES
QUE ROLARAM COLINA ABAIXO
E SE DESPEJARAM SOBRE ESTEIOS
CRAVADOS NAS ENTRANHAS
DOS PLANOS ESTENDIDOS
ENTRE AS MARGENS QUE LIGAM O SOPÉ DAS COLINAS,
PERTURBANDO O FRUTO E A FESTA DO RIOPOVO.
TAMBÉM CONTRA OS MONTES DESPEJADOS
DE OUTRAS TERRAS
E ATRAVESSADOS
CONTRA O CHORO DA MÃE,
ESTRAGANDO A CORRIDA DO RIO E DO POVO
ENTRE OS BRAÇOS DA SERRA
E OS JOELHOS MAIS BRAVOS DO MAR, NOSSO PAI.

NOS INSTANTES BREVES
A MÃE CHORA
E CONFIRMA A POSSE E O ESTADO
ENTRE AS MARGENS QUE LIGAM O SOPÉ DAS COLINAS.
QUE DOR, QUE TORMENTO,
QUANDO OUTRO POVO, QUE NÃO DO RIO,
APROVEITANDO AS FAINAS E AS FESTAS DISTRAÍDAS DO RIOPOVO,
NOS INSTANTES LONGOS,
TAPOU AS MARGENS E O ESPAÇO ARENOSO ENTRE SI,
ATIRANDO CASAS E ARMAÇÕES, COLINA ABAIXO,
DESPEJANDO-AS SOBRE ESTEIOS
CRAVADOS NAS ENTRANHAS,
ENTRE AS MARGENS QUE LIGAM O SOPÉ DAS COLINAS.
E MAIS ALCATRÃO QUE TAPA E ESCURECE,
E MAIS MONTES DE OUTRA TERRA
ATRAVESSADA CONTRA O CHORO DA MÃE E AS CORRIDAS DO RIOPOVO
ENTRE OS BRAÇOS DA MÃE
E OS JOELHOS MAIS BRAVOS DO PAI.

O POVO DEIXOU DE FAZER RISCOS DE PENTE
ENTRE OS LIMITES DAS MARGENS QUE LIGAM O SOPÉ DAS COLINAS,
PORQUE NÃO SE PODE PENTEAR NEM FAZER A FESTA
EM CIMA DAS PROPRIEDADES HORIZONTAIS,
DOS QUARTEIS DOS BOMBEIROS,
DOS MERCADOS, NEM DOS GRANDES PAVILHÕES.
O RIOPOVO NÃO VOLTA ÀS ENTRANHAS DA TERRA
BUSCAR FRUTO E FESTA.
AS ESTRANHAS ESTÃO CRAVADAS DE ESTEIOS.
ONDE OUTRORA SE CANTAVA E DANÇAVA
COM O VAGAR DE QUEM MASTIGA O SABOR,
ANDAM LOUCAS AS MÁQUINAS QUE BUFAM FUMO.
QUE TORMENTO! QUE DOR!

MAS A MÃE CONTINUA A CHORAR
NOS INSTANTES BREVES,
E A CONFERIR A POSSE E O ESTADO
ENTRE AS MARGENS QUE LIGAM O SOPÉ DAS COLINAS,
COM DOR E COM TORMENTO.
A MÃE ASSISTIU E COMPROVOU
A CHEGADA DE OUTRO POVO QUE NÃO DO RIO,
COM CASAS E ARMAÇÕES
ATIRADAS PELAS COLINAS ABAIXO
E POUSADAS NOS ESTEIOS QUE CRAVARAM NAS ENTRANHAS
ENTRE MARGENS
QUE DEIXARAM DE LIGAR O SOPÉ DAS COLINAS.
O RIOPOVO FOI EMPURRADO,
NOS INSTANTES DE AGORA,
PARA A POESIA.
APENAS COM DIREITO
A CONTEMPLAR OS ANFITEATROS
E AS BANCADAS COM CIMENTO DESERTO,
NO SÍTIO ONDE ANTES TIRAVA FRUTO
E CANTAVA E DANÇAVA.

VAI VAZIO O RIO QUE CORRE EM MIM.
É POUCO O POVO QUE CORRE NELE.

Manuel Farias